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Um psicanalista que tenta compreender o que a priori se mostra como paradoxal, mas, no caminhar, apresenta-se como complemento. Tem por intenção ampliar o conhecimento sobre a alma humana através de uma escuta diferenciada e - por extensão - oferecer um espaço para a transmissão desse saber, que não é totalizador, articulando-o com o não-saber inconsciente. henriquesenhorini.blogspot.com.br

domingo, 23 de junho de 2019

Drogas: destino de uma ilusão?



Drogas: destino de uma ilusão? *

Henrique Senhorini 
outubro 2012


Do que se trata?
Esta palestra sobre as drogas tem, como propósito, fazer pensar, questionar,
discutir, tocar e sentir-se tocado pela palavra sobre a problemática que o tema
drogas traz a tona....sem dissimulação, sem rodeios e com um mínimo de
pré- conceitos possíveis.
Quem sabe, fazer disso – do que iremos falar aqui – algo que possa, de certo modo, provocar uma reflexão, exercitar o pensamento sobre o uso e abuso que se apresenta sob vários contextos, textos e pretextos. Com o intuito de adquirir mais recursos, mais ferramentas para enfrentar os previstos, im-previstos, os casos e a-casos, que transitam com a droga.
Mas, hoje vamos falar somente das drogas ilícitas e não prescritas. Vamos falar das drogas que não se acham à venda nas prateleiras das drogarias oficiais, legais... Vamos discutir aqui, nessa palestra, sobre o crack, cocaína e não sobre as outras “ínas” como as ritalinas, anfetaminas e “etcetaraínas” que podem causar o mesmo efeito e resultado: a escravidão !!!
E para me auxiliar nesse trabalho, tenho a psicanálise como pilares do meu
pensamento teórico.
Bom, após essa breve introdução, começo a palestra com uma questão que sempre surge quando o tema é droga:
Por que alguém se torna um drogado? (Burroughs)
Essa questão provoca uma outra que considero mais interessante ainda:
Será que alguém acorda num belo dia decidido a se tornar um drogado?

Para facilitar o desenvolvimento de uma hipótese que essas questões suscitam de como alguém pode advir um drogado – vamos pensar em TEMPOS – como propõe Giulia Sissa, para auxiliar na nossa caminhada.
Pois, contar a história de um hábito, de um vício, de uma regularidade que se faz cada vez mais repetitiva, significa procurar os momentos de descontinuidade e, aí, mais questões se levantam:
Quando o ritmo – marcado nos primeiros encontros com a droga – assume
outra cadência?
Quando os dias começam a se estruturar em função de uma única
preocupação ? pré-ocupa-ação
Quando a alternância entre períodos com e períodos sem se torna
ingovernável / incontrolável?
Quando o prazer se torna um analgésico para a vida?
E de um modo mais retrospectivo, outra questão emerge:
Quando foi que tudo começou?

Os Tempos da Droga :

O Tempo de Atração

Geralmente, quando se chega a adolescência, muitas fantasias a respeito das
drogas surgem na cabeça daquele jovem. Na maioria das vezes são fantasias,
aliada a curiosidade – pois provavelmente já ouviu alguém comentar que foi legal, maior barato, rolou isso e aquilo – que de certo modo favorece e até mesmo incentiva o famoso: “só vou experimentar”.

E isso se dá por mais diversos motivos, seja para não ser taxado de neerd ou para se aproximar de uma garoto, ou garoto, para ser aceito numa determinada galera descolada, ou para fazer parte da temida galera do mau, visto que essa também tem seu charme, prestígio, status, ou por ouvir falar que se fica mais descontraído, extrovertido, falante, circulante, sem a vergonha que o caracteriza, etc...

Aí, quando menos se espera – sem querer querendo, como diz o personagem
mexicano Chaves, o jovem se vê diante dela – da droga. Eis a oportunidade, afinal, será só um peguinha, só uma cafungada, só pra ver como é... e isso não tem nada de mais – pensa o jovem. E lá vai ele ter seu primeiro encontro com a droga. Um encontro “casual”, como preferem acreditar.


O Tempo do Enamoramento – o período cor-de-rosa da relação

Após o primeiro encontro, após inaugurar a marca dessa experiência no sujeito e de se inscrever na sua subjetividade, o usuário é movido pela força de atração que a droga exerce, pois ela detém um poder de sedução fortíssimo que, por subestimar esse poder e por supervalorizar o poder de seu controle sobre si mesmo, o iludido segue nessa batida.

Só para agregar, o poder de sedução da droga pode ser comparado àquele do canto das sereias de Homero:

Homero, descreve em seu poema épico “Odisséia”, o perigo que Ulisses enfrentou ao navegar no Mar Egeu, no seu regresso a Ítaca, sua pátria, depois da batalha de Tróia. Ninguém podia escapar com vida após ouvir o maravilhoso canto das sereias. Elas exerciam um poder irresistível sobre seus ouvintes, que, inebriados, se atiravam nas águas e nunca mais voltavam.
Ulisses - herói da mitologia grega e símbolo da capacidade humana de superar adversidades - resolveu conhecer esse canto, sem contudo colocar em risco sua vida. Era homem conhecido por sua valentia, prudência e esperteza. O ardil do cavalo de madeira garantiu-lhe a vitória em Tróia. Estava disposto ao confronto. Então ordenou aos seus marujos que o amarrassem ao mastro do seu navio para que pudesse ouvir o canto mortal. Os marujos taparam os ouvidos com cera. Assim, o marido de Penélope e seus companheiros atravessaram sem perigo aquele pedaço de mar, ouvindo o maldito canto.


Portanto, o que não passou de uma eventualidade, de um encontro furtivo, de um acaso, de uma contingência, segue por um período de felicidade e de busca repetida do prazer experimentado. Uma busca recompensada positivamente e generosa. A descoberta do prazer que a droga proporciona, a descoberta da euforia, da sensação de se estar no topo do mundo, de ser sem limites, de gozar uma fantástica plenitude inesgotável e tudo isso a um preço baixo, barato e a venda em quase todas as esquinas da vida cotidiana embaladas em pacotinhos que se transformam em fontes de alegria de bolso, leva a pessoa – na maioria das vezes – a transformar os “encontros casuais” em compromisso.
Um compromisso que se cumpre com pontualidade, sem atraso e que corresponde inteiramente à expectativa... A famosa “sexta-cheira”, como muitos dizem.
Por favor gente; não subestimem o poder de sedução da droga, pois o apelo é
muito forte e a promessa de felicidade é praticamente irresistível para a os mortais seres sofrentes.

O Tempo da Entrega

O que acontece então? Bom, acontece que, nesse momento, o usuário começa a pisar mais fundo no acelerador. A candência aumenta a um ritmo que se aproxima ao da música eletrônica....aquele tipo bate-estaca.
A sexta-cheira se transforma em final de semana completo....
Pra quê só as sextas se posso “esticar” um final de semana inteiro? Pensa o incauto. E isso sem falar das RAVES (vários dias de balada), com suas drogas sintéticas e extasiantes – o famoso Esctasy, conhecido, também, como a droga do amor.
Será isso que procuram? Amor?
Isso não deixa de ter uma certa lógica: a lógica da droga, de quanto mais prazer, melhor.
Mas, não pára por aí não.....a lógica continua...o sujeito amplia seu final de semana, que agora começa na quinta. E o tempo de basta se distancia cada vez mais.
Com a sequência começam também as consequências....O usuário percebe que ele já não está tão legal, que o uso da substância não produz o mesmo efeito....aquele das primeiras vezes. E encarar a segunda-feira torna-se uma tarefa cada vez mais difícil de ser realizar sem a ajuda de um aditivo......
Mesmo assim, insiste e persiste, pensa e se ilude: quem sabe da próxima eu me acho mais e aquele sensação primeira re-aparece....Também, possui a certeza que está no controle....que tem poder de decidir parar de usar na hora que bem escolher, na hora que quiser. Esse é um discurso pronto que o usuário – antes eventual – utiliza para se enganar... e também enganar os outros...Santa Ingenuidade, diria o Robin do Batman. Tolinho, no mínimo.
A ressaca, a Rê-Bordosa, a depressão pontual, a culpa superegóica que lhe cobra sem sessar: tu deves ! Tudo isso torna-se um fardo pesado no dia seguinte.
Haja hoje para tanto ontem” como já escutei na clínica.
A vida do sujeito que já não estava lá aquela coisa, transforma-se em insuportável..
E, então, o que já estava transbordando, vaza de vez.....
Aquele “tu deves” agora não está mais só....se apresenta acompanhado de uma nova ordem imperativa: “pagarás com mais drogas a tua dívida!”

E é o que ele faz para tentar não pensar no que sua vida está se transformando... e também para tentar evitar o inevitável: a culpa.
Nesse momento, fazer uso da droga deixou de ser uma demanda de amor para se transformar em pedido de necessidade....para dar conta de sua vida miserável.
Para dar conta das dificuldades do mundo, do Outro, do seu superego cruel e
tirânico....da dor de viver, da depressão que se anuncia.
O que fazer? ..se pergunta o infeliz.
A resposta pronta vem de imediato: mais droga. A alegria do início se
transformou em um imenso descontentamento, numa tristeza pura.

O Tempo da Escravidão

É quando a droga toma posse, tornando-se o senhor absoluto do ser-do-ente.
E numa tentativa desesperada de sair do desprazer que a vida sem a droga e ainda buscar aquele prazer das primeiras vezes de uso – que deixou uma marca – o sujeito repete e repete e repete cada vez mais seus encontros com a droga, quase que num contínuo. A repetição parece ser a o elemento-chave que introduz o sujeito na escravidão. E o que determina tal insistência é julgado da ordem do imponderável, do indeterminado. De ato-em-ato o corpo e o sujeito – este cada vez mais eclipsado pela droga – não podem mais dizer sim ou não. Trata-se de um ato não mais calculado que irrompe na cena da existência. Repeti-lo se faz necessário.
Se há prazer, bem estar, dor, sofrimento...já não importa mais. O sujeito que
começa a sair de cena não dirige mais sua vida. E a carne – é nisso no que se transforma o corpo - um monte de carne autônoma (lembrando um zumbi) – começa a dar sinais que não está bem.
O que entra em cena, no lugar, são episódios de confusão mental, manifestações desfuncionais, diminuição na eficiência dos atos, menor interesse no trabalho, opacidade sexual. Os laços sociais ficam cada vez mais reduzidos e frágeis.
A vida vira uma quase nada – uma miséria vital (Daniella Castiglia). A droga tomou o lugar dos desejos, das relações, do amor, da família e dos outros objetos. Tornou-se cotidiana nesse corpo. Aos poucos, como uma traça, a droga corroendo o que vê pela frente.
As doenças vão surgindo, os órgãos despedaçando-se e o sujeito se apagando.
Não existe nem passado, nem futuro que se possa sustentar. Apenas o presente que a droga oferece....”só mais uminha”, diz o que ainda sobrou do ser numa tentativa insana de controlar o seu descontrole....
Em alguns episódios de lucidez percebe que nunca teve controle de nada, está a mercê da droga, totalmente entregue. A droga se apossou do ser-do-ente.
A armadilha montada por si mesmo o fez cair a cada grama de pó, a cada pedra de crack, a cada pico de heroína, a cada pílula de felicidade....

E, como consequência, tudo cai. Cai o trabalho, os laços sociais, a família, a dignidade, a subjetividade. Por fim, cai o corpo. O que começou como promessa de prazer, de completude – na qual o usuário acreditava que podia escolher quando e como parar de se drogar – tornou-se agora uma conduta necessária para qualquer tipo de ato. É difícil falar de sujeito do inconsciente em tais circunstâncias, visto que esse encontra-se agora tão tamponado, tão eclipsado, que o que se vê é só um corpo que cai....e este é pura droga e mais droga é só o que lhe interessa.
A busca tornou-se o exercício supremo....só lhe restou está opção.
A obediência ao encontro com a droga segue agora o modelo do instinto. A droga tomou o perfil de algo insubstituível, como o oxigênio que respira.
Tomou o perfil de um senhor feudal cruel, tirânico do prazer cuja voz imperativa diz: GOZA!!! Por fim, o processo de escravidão está consumado.

Tratamentos

Segundo a O.M.S., o Homem é um ser bio-psico-social-espiritual
Esta definição aponta clara e indubitavelmente que o profissional de saúde deve estar conveniente e adequadamente preparado para trabalhar todas as dimensões existenciais do ser humano e da vida humana. Portanto, no caso da toxicomania, exitem vários tipos de tratamentos como, por exemplo, o medicamentoso, o comportamental, o de auto-ajuda, o religioso, o psicanalítico e outros. 
Mas, o mais importante é não ficarmos reduzidos a uma visão dicotomizada:  CORPO X MENTE.

Sobre esse aspecto, penso numa frase de um autor que me auxilia no meu
posicionamento: “Se não há humanos sem as características biológicas, também não há humano sem a palavra sem o Outro.” (L.Althusser)
Por isso, não acredito numa prática ortodoxa, numa terapêutica engessada, que reduz os pontos de vista diferentes e empobrece a discussão. Aposto na multi e interdisciplinaridade. Todas podem dar a sua contribuição, permanecendo no seu próprio campo. E se há escolhas, não há uma só verdade – como diz MRKehl.

Logicamente tenho minha opinião a respeito da eficácia das terapêuticas
disponíveis – até da não muito famosa/conhecida, Redução de Danos que,
particularmente, acho muito interessante.
Penso que todas podem dar um tipo de contribuição, mas, tenho mais restrições as de auto-ajuda, tipo AA – nesse caso, NA – que fixam e reduzem o sujeito a uma identidade: sou Sicrano toxicômano, sou Fulano dependente químico. Pois ao pronunciar “eu sou toxicômano” ele não pensa. O “eu sou” recobre o “eu penso” havendo uma neutralização de toda troca simbólica.
Também tem aquelas que tentam tirar a responsabilidade do sujeito de sua
desgraça, como os que se apoiam unicamente na genética (culpa do gene, do DNA), aquelas que creditam a conta somente no encosto, nas más companhias, etc...  esquecendo da historicidade do sujeito e sua implicação com seu estado e companhias”. Mas, enxergo que - em alguns casos e de acordo com a situação – se faz necessário uma intervenção mais enérgica como, por exemplo, a internação involuntária – compulsória, para uma clínica  ou hospital de psiquiatria. 

Vejam, somente para a pessoa poder atravessar um momento crítico com mais segurança. Lembrem que eu sou psicanalista e como tal, meu campo é o da palavra.
E para que esta esteja presente é preciso que haja um sujeito (do inconsciente).
E sobre a abstinência, entendo que esta é muito mais nossa do que do
toxicômano, que passa por esse processo com muito sofrimento, desorganização psíquica, fragilidade subjetiva.... e para ajudá-lo a atravessar esse sofrimento brutal, muitas vezes, a entrada dos fármacos no tratamento são bem vindos.

Retornando, a abstinência é mais nossa porque somos nós que devemos dar conta do nosso “furor sanandis” (obsessão de curar o paciente a qualquer custo). Portanto, suportar as recaídas e outras atuações como os actings-outs, por exemplo, do ser sofrente é parte do processo terapêutico.
Pois não devemos nos esquecer do que está realmente em questão se: é o número de dias que o paciente não faz uso das drogas ou o que leva ele a buscar e usar a droga. E para tentarmos nos aproximar da causa e não do sintoma (não se prendendo no efeito sinto-mal), precisamos disponibilizar a escuta no quê está sendo colocado no ato de se drogar e para quê...
Para a medicina, o sintoma é sinal de doença.
Para a psicanálise o sintoma é uma metáfora – é o substituto da doença.
Só existe quando algo falha.
Para tanto, insisto, é preciso escutar a droga como agente de uma função psíquica e escutar o que está em jogo no ato de se drogar:
Trata-se de uma demanda de amor?
De um pedido de reconhecimento? Visto que é preciso mostrar-se onde a palavra fracassa?
De um ato transgressor? E se for? Trata-se de uma perversidade sadomasoquista
contra si mesmo? Trata-se de uma estrutura clínica perversa? Ou de
transgressões adolescentes como forma de protesto cultural, contra as normas do Pai: o Pai da Lei simbólica?
Trata-se de uma tentativa de realizar um ideal narcísico de auto-suficiência? De um auto-erotismo?
Trata-se de um tipo de relação com o objeto? De um sintoma?
De uma forma de gozo? A droga seria a escolha do gozo contra o amor e o desejo?
Bem, a proposta da psicanálise é a de tentar fazer uma leitura do sujeito que
sofre.
Por isso tratamos da miudeza, do quase todos são iguais....tratamos do
quase, do quase sou feliz. É como diz Karin de Paula, a psicanálise trata da miudeza, do varejo.

Somente assim poderemos dar uma direção ao tratamento em relação a cura.
Uma direção que restitua ao sujeito “suas próprias” condições subjetivas, que resgate seu ideal e o viabilize a se autorizar e assumir frente ao que diz, remetendo-o às suas próprias palavras e apontando para o que evidencia como índices de seu desejo.
Concomitante, haveria um trabalho de luto do lugar vazio deixado pela droga, onde o sofrente depositará vários de significantes demonstrados na descoberta, na invenção, ou na recuperação de interesses, tais como: afetivos amorosos,
familiares, profissionais, acadêmicos, esportivos, artísticos, comunitários,.... entre tantos.
É um trabalho de construção em análise. De re-significação da palavra e da posição subjetiva que permitirá o sujeito falar em nome próprio, para que uma pergunta a ele se formule: Qual a tua participação na desordem da qual se queixa?
E, através de um estímulo para essa construção, surgirá a possibilidade de se colocar uma outra música para tocar do que aquele bate-estaca (que tal um reggae?)..
Surgirá, também, a possibilidade de se re-inventar...de modificar o circuito pulsional, a forma de gozo, o sintoma....Novamente com Karin de Paula: é da psicanálise transformar um sofrimento brutal em uma dor banal !!!

A Psicanálise e a Toxicomania

A psicanálise tem uma “relação” com a questão droga desde a sua criação. Isto se deu a partir do envolvimento do próprio Freud com a cocaína ocorrido numa fase que muitos a chamam de pré-psicanalítica.
Gostaria de relembrar a radical transformação por que passaram a opinião e o
julgamento do próprio Freud a esse respeito: mais especificamente, em relação ao consumo de cocaína.
De acordo com Raul Pacheco, na penúltima década do século XIX (década de
1880), Freud investigou o potencial terapêutico da cocaína. Aquilo que se iniciou como um moderado interesse intelectual por um assunto, análogo ao que usualmente se encontra em boa parte dos trabalhos científicos, transformou-se rapidamente em um evidente entusiasmo pela droga, tanto como cientista, quanto como consumidor habitual. Isso chegou a ponto de ele vir a considerá-la uma droga mágica”, com prescrições que abrangiam da indigestão e do catarro gástrico à depressão e melancolia.
Além de consumi-la regularmente, recomendava-a a amigos e à própria noiva,
Martha Bernays, “a fim de fortalecê-la e dar um tom vermelho às maçãs do seu rosto”. Para ilustrar, apresento um recorte de Uma carta de Freud para Martha Bernays, de 1884, na época em que preparava uma publicação sobre os efeitos terapêuticos da cocaína, deixa transparente a excitação que o invadia:

Ai de ti, minha Princesa, quando eu aí chegar. Beijar-te-ei até que voltes a ter as
tuas cores rosadas, e alimentar-te-ei até que estejas roliça. E se te mostrares
rebelde, hás de ver quem é o mais forte - uma gentil senhorita que não come o
bastante ou um grande brutamontes selvagem que traz cocaína no seu corpo. Durante
minha última depressão grave tornei a valer-me de cocaína e uma pequena dose
levou-me às alturas e de maneira maravilhosa. No momento encontro-me ocupado em
colecionar a literatura necessária a um canto de louvor a essa mágica substância.”

Sabemos que Freud teve que recuar em relação a essa opinião favorável sobre a cocaína e conhecemos as drásticas conseqüências do seu engano para os seus próprios clientes e para o seu amigo íntimo Ernst von Fleischl - Marxow, que o encheram de culpa e remorsos e lhe renderam graves censuras das comunidades médica e científica, na época. E sabemos também da intensidade dessa culpa, pela freqüência com que compareceu ao conteúdo latente dos sonhos de Freud, entre os quais o famoso “sonho da injeção de Irma”.
Compare-se, além disso, a sua opinião inicialmente favorável sobre a cocaína, na década de 1880, com a posição a respeito das drogas que ele vai assumir
posteriormente, conforme se pode constatar em “O mal-estar na civilização”, de 1930. E aproveitando o gancho...

Trata-se de uma questão social?
A droga é um sintoma social?

Muitos pensam que sim.
Vamos relembrar algumas opiniões de Freud, em “O mal-estar na civilização”,
sobre o sofrimento, suas origens e os meios pelos quais os seres humanos os
enfrentam e também sobre as drogas, de modo a podermos balizar alguns pontos importantes que auxiliem a análise das relações entre o consumo de drogas e aspectos da cultura e da sociedade contemporâneas.
Segundo Freud, a vida é árdua demais para nós e nos proporciona muitos
sofrimentos e decepções, além de exigir-nos tarefas impossíveis. Para suportá-la, os indivíduos lançam mão de três tipos de medidas:

1- satisfações substitutivas, como a Arte a Literatura, por exemplo, que se revelam psiquicamente eficazes, devido ao papel da fantasia na vida mental;
2- derivativos poderosos, como o é a própria atividade científica, que nos fazem extrair luz de nossa própria desgraça;
3- substâncias tóxicas, que influenciam nossos corpos e nos tornam insensíveis aos nossos sentimentos.
Mais tarde, a religião, entra nessa lista como mais uma medida para suportar o sofrimento.

Freud, nesse momento, está com a questão do propósito da vida humana. Esse propósito, enquanto evidenciado pelas ações das pessoas, consiste em obter felicidade, o que as orienta na direção de dois objetivos fundamentais:
1- evitar o sofrimento e desprazer;
2- a busca de prazer.
E conclui: “Como vemos, o que decide o propósito da vida é simplesmente o
programa do princípio do prazer e esse domina o aparelho psiquíco desde o início.” (a ironia é que o princípio do prazer, na realidade chama-se princípio do prazer e desprazer). 
Bem.... O propósito da vida humana rege-se, então, pelo “princípio de
prazer”, ainda que ele não tenha possibilidade alguma de ser executado, já que todas as normas do universo mostram-se-lhe contrárias: a intenção de que o homem seja feliz não se acha incluída no plano da Criação.”

Mas, retomando ao pensamento freudiano, a felicidade em sentido restrito -
satisfação de desejos recalcados em altíssimo nível - só é possível enquanto
manifestação episódica.
E a infelicidade, muito mais frequente, vem-nos de três direções:

1 - o nosso próprio corpo, condenado à decadência e dissolução. Leiam velhice e morte;
2 – a magnitude da natureza, que pode voltar-se contra nós com forças de
destruição esmagadoras e impiedosas;
3 - a sociedade e a cultura que nos impõe limites (é bom lembrar que a matriz é a família)

Não é à toa que, com tantas possibilidades de sofrimento, a maioria das pessoas tenha moderado as suas reivindicações de felicidade e as tenha posto sob vigência do mais modesto princípio de realidade”. Este coloca a eliminação do sofrimento em primeiro lugar, à frente da obtenção de prazer.

- Bem, podemos dizer: …...isso foi naquela época, na qual o mundo encontrava-se inserido numa cultura fortemente rígida e restritiva que se opunha à satisfação das pulsões sexuais e agressivas, mas, agora é diferente, agora estamos numa época de liberdade individual onde podemos nos expressar abertamente nossas opiniões (o politicamente correto é mais uma forma de controle?) liberdade na escolha sexual, dos laços sociais virtuais, época da alta tecnologia, dos satélites on-line que nos informam – com antecedência - sobre a natureza, sobre os furacões, tsunamis e terremotos, da medicina estética que nos deixa mais belos e jovens, dos fármacos,que melhoram nosso humor... Ah !!! A vida agora tornou-se muito mais fácil, sobra mais tempo para gente desfrutar, gozar da vida.

E aí.....Alguém realmente acredita nesse meu raciocínio? É assim que se sentem?
É...nem eu...visto que nós nos encontramos - hoje – numa sociedade que já foi batizada de espetáculo, narcísica, individualista...
- Numa sociedade onde a liberdade individual assume valor máximo e prazer é especialmente consagrado....principalmente o imediato
- Numa sociedade onde a Lei de Gerson encontra eco nos que a legitimam e o discurso “quero me dar bem” permeia todos os patamares sociais...
- Numa sociedade que privilegia a satisfação imediata, que tenta de todos os
modos suprimir a dor.. Num lugar em que a tristeza é entendida como depressão (anti-produtivo), fraqueza... que desafina os coros dos contentes... dos possuidores do NEXTEL (esse é meu mundo)
- Num lugar no qual nem a dor do luto é respeitada, pois o “show não pode parar”
- Num lugar onde o discurso do capital impera e onde os que não correspondem são taxados de fracassados e colocados à margem.. são marginalizados e excluídos e vistos até como seres de menos valia.

Pois é ...E isso tudo vai se tornando insuportável e incitando a saídas menos elaboradas, a respostas de caráter imediatista e absoluto como o recurso às passagens ao ato, como oferece, por exemplo, uso das drogas - um pacotinho de felicidade a venda até no sistema delivery....disk-drogas
Mas, isso está coerente com o discurso capitalista....Compre isso que você será feliz, compre aquilo que você sentirá a satisfação de viver....use botox p/ manter-se sempre esticado....faça plástica e mude o guarda roupa para se parecer como teu filho, como um jovem...
Sinta-se “No Limits” compre X...e por aí vai..... bombardeio e mais bombardeio por parte da mídia, uma constância, sem tréguas que faz o sujeito acreditar e se iludir.
E nada representa mais esse discurso do que o objeto droga...
Trata-se de uma indústria que movimenta bilhões, trilhões de dólares por ano no mundo inteiro.... e pra quê?

Será que é para suprir as carências de milhões de consumidores que buscam fugir de suas realidades a qualquer preço, ou no mínimo, buscam evitar o desprazer....
Como nos alerta Melman, “a sociedade capitalista sustenta como ideal o consumo, e ignora que é o toxicômano que o realiza plenamente.”
E a fidelidade do drogadito ao seu objeto de consumo mostra, na sua forma mais pura e radical, a adesão a uma relação com o mundo fundamentada na busca de realização da existência pela via do consumo:

O toxicômano representa de alguma maneira, o ideal do discurso capitalista, um sujeito que consome a mesma coisa durante anos, a tal ponto que de sua prática, ele se torna aquele que sustenta um modo de pensar: ‘o homem moderno’.”

Se o estilo existencial do drogadito não pode ser considerado incoerente com a lógica do capitalismo, muito menos o poderia ser a racionalidade subjacente ao negócio que lhe fornece o seu produto - a produção e o comércio das drogas - como podemos deduzir das análises de Karl Marx:

O capital foge dos tumultos e das disputas, ele é tímido por natureza. Isso é verdadeiro, mas não é toda a verdade. O capital detesta a falta de lucro, ou um lucro muito limitado, tanto quanto a natureza tem horror ao vácuo. Se o lucro for conveniente, o capital se torna corajoso; com 10% assegurado, vai a qualquer lugar; com 20%, se acalora; com 50%, torna-se temerário; com 100%, esmaga sob os seus pés todas as leis humanas; com 300%, não há crime que não ouse cometer, mesmo arriscando o patíbulo. Quando a desordem e a discórdia trazem lucros, ele encoraja a ambas. Querem uma prova ? Eis o contrabando e o tráfico negreiro”.

E a droga, com seu escravismo, com seu tráfico é a mias moderna tradução desse pensamento de Marx.
Não é surpreendente, portanto, que para muitos indivíduos, atualmente, a droga seja “(…) utilizada como tentativa de inscrição de uma identidade”

Ah !!!!!!! …..Mas, “peraí” , diz alguém, .....ainda tem a família, né?
Bem, de acordo a Elisabeth Roudinesco, a família está em desordem...e eu
concordo. Principalmente no que refere daquele que teria como função, a paterna, como representante da Lei, dos Limites, parece-me que quem deveria fazer a função PAI, perdeu seu poder fálico, ou melhor, ficou reduzido a quantidade de dinheiro que tem no banco, no bolso. A impressão que dá é a de que se não se tem dinheiro não tem valor, não tem poder e sem isso não dá para legitimar a Lei.
Como conseqüência, aparecem falhas nessa, nossa Lei. Aparecem furos onde tudo se pode, tudo é permitido.

POR OUTRO LADO...


Trata-se de uma questão individual?

Lembremos da frase de Collete Soler: para a psicanálise quase todos são iguais.
E a psicanálise se dedica ao quase.
Voltando a Freud, para evitarmos os sofrimentos e alcançar a felicidade
escolhemos algumas vias, das quais ele considera:
- a aniquilação dos nossos próprios desejos, por meio de alguma prática de
extremismo religioso
- a reorientação dos objetivos das pulsões para evitar frustrações. É este o caso das sublimações, como ocorre, por exemplo, na produção de obras de arte ou qualquer outro trabalho também pode classificar-se aqui, quando não constituir apenas um meio de garantir a satisfação de necessidades;
- o abandono da realidade, através da loucura;
- através da busca de objetos de amor” para os quais dirigir a pulsão libidinal.
Há ainda uma outra via, A VIA DA DROGA...

Para Freud, trata-se da via mais grosseira, porém a mais eficaz. A droga tanto aumenta o prazer, quanto diminui a sensibilidade ao desprazer. E oferece-se como um meio de atingir um alto grau de independência do mundo externo e da realidade, proporcionando um refúgio em um mundo próprio.
Eu, além de concordar, dou meu pitaco: além de ser a mais grosseira, considero também como a mais burra das respostas que o sujeito poderia escolher.

Mas...   e na atualidade? O que os - chamados por alguns - pós-modernos andam fazendo para evitar o desprazer, a solidão, o desamparo, a angústia? Qual a saída (leia-se fuga) que se apresenta para evitar o sofrimento?
Bem, diante do quadro que se apresenta na contemporaneidade, alguns - para suportar o insuportável - escolhem a comida como objeto de desejo - seja no excesso de tudo ou de nada visando tamponar o vazio existencial/constitutivo, como, por exemplo, na obesidade mórbida, ou na anorexia ou bulimia. Outros elegem o sexo, o álcool, o jogo, o bingo das velhinhas, os shopping, os carrões, os sapatos e bolsas “pradas” da vida, coleções das mais variadas (coleção de namorada/namorado- de esposas/esposos, de ficantes), trabalho em excesso – vide os viciados em trabalho, os workaholics e etc...Mas, há também os que elegem a droga, que para Freud, é a via preferencial – entre outras citadas por ele - mais grosseira, porém a mais eficaz. Está logo alí, bem perto e a dez real. Lembram?
A droga tanto aumenta o prazer, quanto diminui a sensibilidade ao desprazer.

É bom deixar claro que não se trata de moralizar sobre o que é certo ou errado e sim apontar as conseqüências das escolhas. Pois, a ética da psicanálise respeita o sujeito em sua singularidade. Porém, deve se basear no reconhecimento dos limites e na incompletude do saber de si, para que cada um se responsabilize pelos seus casos e acasos.
Isso quer dizer que qualquer pessoa tem o direito de fazer e ser o que bem
entender, desde que assuma as responsabilidades e as conseqüências de suas escolhas.

E aí surge a pergunta que não se cala:
- Por que alguns usuários tornam-se toxicômanos ou dependentes - como queiram - e outros não?

Freud ensina que depende da especificidade de cada sujeito e da singularidade da interação entre constituição psíquica e circunstâncias do ambiente e da história de cada um.

Bem, colocando o contexto social como pano de fundo, penso que trata-se mais de uma questão de relação. Do tipo de relação que o sujeito tem com o objeto droga. Para os denominados os viciados - que fixam o gozo ficando nessa posição de escravo - a relação com a droga é de exclusividade.
Trata-se de um empobrecimento da subjetividade, dos laços sociais, dos laços afetivos, dos recursos psíquicos, da fantasia original, da dimensão imaginária e simbólica. O objeto droga está colocado na posição de objeto ideal.
E isso, na minha opinião, ocorre com mais freqüência - entre os usuários contínuos – quando há falhas, buracos abissais na constituição e estruturação do sujeito. Falhas essas, decorrentes em sua maioria, da função paterna, da Castração Simbólica (que é a que interdita) e do Narcisismo.
Com essas falhas o sujeito não consegue estabelecer as circunstâncias nas quais se pode suportar a falta.... o que falta.

Há como evitar as armadilhas da droga?

Bem ! Trata-se de uma aposta, como tudo na vida....
Ulisses apostou que seu mastro suportaria o peso de seu corpo amarrado a ele eque lhe daria sustentação na travessia perigosa, não cedendo ao canto e  encanto das sereias....o que acabou ocorrendo: não cedeu.
Portanto se cuidarmos e se possível aumentarmos o números de mastros (mastros simbólicos) que poderão nos fornecer sustentação psíquica ficará mais difícil ceder ao canto e encanto das sereias. Um exemplo simples, porém não simplório, de mastro para os jovens (que pode fazer um certa suplência na função paterna) seria o esportes para as crianças...ou qualquer outra coisas que possa tomar o lugar de importância na vida.
Mas, como não temos o dom da adivinhação, que não temos garantias de nada a priori (a não ser da morte) e que ficaremos sabendo do resultado da experiência com a droga sempre a posteriori, sempre depois.... a melhor resposta para essa a questão é também a mais prudente:
Sim ! Evita-se as armadilhas da droga não entrando nesse jogo.......vá fazer outra coisa, de preferência algo de produtivo (e que também seja gozante) e não destrutivo.
É isso !!! É o Isso!

* texto retirado da palestra proferida por Henrique Senhorini, realizada na sede ABRAPE, em 25/10/2012. 


quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Identidade: um conceito da Psicanálise!?

de Henrique Senhorini

texto apresentado no debate promovido pelo Centro Estudos Psicanalítico - 08/2015



NÃO SOU NENHUM
Entre o que de mim penso e o que sou
está o que pelos outros sou pensado
E como de todos sou todos e cada um, deles não sou nenhum.
E como se estes espelhos múltiplos não bastassem
ainda falta o que penso que de mim os outros pensam
E o que gostaria que de mim os outros pensassem.
E como de mim e dos outros sou o que eu e os outros me inventam
sou uma múltipla abstracção
Sou o inexistente que me penso e os outros me pensam!

Valter Guerreiro


Eu vou pagar a conta do analista
Pra nunca mais ter que saber quem eu sou   -  Cazuza em Ideologia

A Identidade, para a psicanálise, trata-se de uma noção extramente difícil de, no mínimo, encontrá-la em sua literatura e o verbete identidade nem consta em quatro de seus principais dicionários, pesquisado por mim, (Kaufmann, Laplanche & Pontalis, Dylan Evans, Roudinesco), pois seu conceito, o conceito de identidade, não pertence à terminologia da psicanálise, como afirma Eduardo Leal Cunha em seu trabalho intitulado “Uma interrogação psicanalítica das identidades”. Até porque a introdução deste termo, Identidade, nesta área de conhecimento conduz uma série de problemas - teóricos e clínicos - para esse saber quem tem como objeto de estudo - e acreditamos nele - o inconsciente, que é o não saber.

Vocês podem até duvidar, mas o que nos marca mais como seres únicos, singulares é a maneira como encaramos as diversas formas de sofrimento. Alguns sofrem mais, outros sofrem menos. E estes últimos são os considerados os felizes da nossa sociedade contemporânea. Mas que todos nós sofremos, sofremos.

Sofremos, principalmente, através dos nossos sintomas que se iniciam concomitante com a nossa constituição de seres falantes (sujeitos) lá atrás, mais precisamente no famoso “O estádio do espelho como formador da função do eu” no qual Lacan (1949, p. 96-103) precisa/estabelece o início do nosso processo de identificação, via alienação simbiótica, com o Outro fundamental (a mãe) na nossa constituição como sujeito (do inconsciente) e que nos faria pensar, com Lacan na memória: eu sou o seio que sou.

É desse nosso primeiro encontro (pode ser desencontro também) com o Outro Primordial, chamado na intimidade de mãe (para a grande maioria), que começamos nossa narrativa ... E dependendo da posição do nosso pai - não necessariamente o biológico e sim o pai imaginário, no édipo - já seremos introduzidos numa das estruturas clínicas clássicas como neuróticos, perversos ou psicóticos. Não se esqueçam, no mínimo somos neuróticos (pelo menos a maioria de nós).
Lacan lembra que tornar-se sujeito passa ainda pelo momento em que a criança, mirando-se no espelho, volta-se para a mãe e a olha como que pedindo que aquela autentique sua descoberta. Será no reconhecimento da mãe, que reagirá dizendo algo como “Sim, é você, Pedro”, que confirmará para a criança a ideia do “sou eu”. Lacan dirá: “É desse lugar que depende o fato de que tenha direito ou defesa de se chamar Pedro” (O Seminário: Livro I, pág. 97).


Pois é... não escapamos disso, pois temos a necessidade de ser alguém para alguém, de ser legitimado, de ter uma identidade reconhecida.

Bem, basicamente começamos com esses dois Outros (primeiro mãe, depois pai) e quando eles nos dizem: “imagina se fosse você”, pronto... instala-se de vez o processo de identificação. E durante nosso crescimento, passamos a conhecer outros grandes Outros. Importante saber que um Outro é alguém ou algo de significativa importância para cada um de nós. Pode ser, por exemplo, o tio/vizinho poderoso, rico, bacana, legal, ou um policial destemido que você se orgulha em conhecê-lo, ou um bandido valentão, um bom professor, ou um padre para alguns ou um pastor para outros. Enfim, todos que admiramos por algum motivo e pensamos assim, muitas vezes sem saber: quero ser como ele.
E nós vamos pegando, no mínimo, um pouco de cada um e subjetivando-o até formarmos o que seria o ideal. Primeiro o ideal impossível para depois transformá-lo no, aparentemente, possível. Porém, mesmo considerado como possível, seu preço é muito alto, muito caro para alguns. E quando vem a fatura, começamos a pagar essa conta, muitos através dos sintomas, por querer atingir e ou sustentar este lugar.
E para seguirmos neste nosso percurso, eu preciso mencionar que para psicanálise não existe sujeito sem sintoma.

e aqui cabe uma nota tipo roda-pé...
Vejam, eu disse sujeito e não pessoas e nem indivíduos. Por que?
Porque a palavra pessoa, de acordo com Rolón em seu livro “Palavras Cruzadas – da dor à verdade” (2009), contém na sua origem “algo que remete à ocultação, ao que não é, à atuação e ao engano”(p. 09-10). Uma máscara, para disfarçar suas “identidades”, também amplificar e distorcer suas vozes, era o que os atores gregos usavam nas apresentações de suas famosas comédias e tragédias. Máscara, mais conhecida na época pelo nome de pessoa.
Já a palavra indivíduo, a negação está nela: não dividido. É justamente o oposto do que somos, sujeitos divididos, cindidos: “Ser ou não ser, eis a questão”. (Shakespeare em Hamlet)
fim da nota

Pois bem, voltando ao sintoma...
O sintoma é a diferença do sujeito, é sua singularidade, pois é desobediente à universalização. Por isso não seria estranho dizer “sou o sintoma que sou”, parafraseando Lacan - na verdade ele disse: “Meu sintoma, eu o sou!”, segundo Soler em “A psicanálise na civilização” (1998, p.195) - para nos diferenciar um dos outros. Eu disse um dos outros e não uns dos outros porque somos UM.

aqui abro um parênteses
Pode parecer paradoxal essa expressão que une identificação com sintoma, até porque, para a psicanálise, a identificação produz o mesmo e o sintoma a distinção. A identificação, de acordo com a autora,é um estigma sobre o sujeito das influências do Outro, inclusive todos os outros sem maiúscula, os semelhantes. ...[e]... Em todas as identificações se pode perguntar: de quem o sujeito tomou emprestado e qual traço [traço unário]” (ibid., p.395).
É por isso que o “sujeito identificado é sempre um sujeito influenciado, quer ele saiba o não. Na maioria das vezes ele ignora” (idem).
Então, o que essa expressão “meu sintoma, eu o sou” quer dizer, já que identificação e sintoma são tão opostos?
Bem, apesar desa oposição, tanto o significante mestre da identificação (mostrarei mais adiante no caso Fênix) quanto o sintoma “têm em comum o fato de serem as inércias que fixam e determinam o ser” (ibid., p. 398).
Porém a identificação do sintoma que Lacan se refere, ainda de acordo com a autora citada acima, não é aquela identificação pela via do Outro e sim a "que designa a finalidade primeira da análise, qual seja, reunir-se em um “eu sou” (je suis) que não seja semblante” (ibid. p. 399), que não é máscara/pessoa, que não é do registro do simbólico, mas sim do real, pois “o sintoma representa justamente um tal real” (ibid.).
É esta identificação com o sintoma que vale para nós.
fecho parênteses

Alías, pode-se transformar o sintoma através da experiência de análise. Como? Modificando-o naquilo que nos causa um sofrimento brutal por uma variação que nos causaria uma dor banal (que muitas vezes passa por desapercebida). Porém, continuarei a ser meu sintoma. Não é legal isso?

- Bem... Vocês poderiam dizer... 'Não, você está enganado Henrique... Eu sei quem eu sou, pelo menos até hoje. E pensando nisso, lembrei de algo interessante. É que eu tenho um vizinho, que é completamente diferente de mim, mas que me parece “estranhamente familiar” (Freud, 1919).

Aí que encontramos, muitas vezes, o X da questão, o enigmático, pois não contabilizamos o que não sabemos e ou nem queremos saber.
Seria o nosso lado obscuro? O nosso duplo? Aquele que recalcamos com muita energia? Pode ser, pode não ser, mas que todos nos temos, temos. Bem, então você não é esse santo todo que pensava e ou gostaria de ser... Afinal, muitos acham graça as vídeos cassetadas das vidas alheias...

Falando um pouco do recalcado, daquilo que não é bem aceito pela sociedade e até por nós... Quem ainda não teve um dia de fúria no qual nem você se reconhece? Ou já não sentiu algo estranho, tipo uma tristeza invadindo a alma que não sabe de onde veio e nem porque veio? Ou de um pensamento impróprio seja ele sexual, hiper-maldoso, criminoso até, totalmente sem sentido e fora da ordem daquilo que você geralmente pensa e sente? Ou de uma sensação de desamparo, como se fosse lançado ao caos, sem chão para pisar e se apoiar, pendurado num nada?
Ou, também, quem já não jurou de pé-junto que numa situação de assalto, por exemplo, não reagiria, muitos até foram treinados para isso, para terem o controle, mas na hora H faz o oposto.... Ou quem já não bebeu, fez alguma besteira e quando “alguém diz”, no dia seguinte o que você fez, você responde: não pode ser. Eu fiz tudo isso? Não, esse não sou eu. Não cara-pálida, quem é então? E olha que isso que eu disse nem precisa cavar muito fundo para emergir estas coisas. Esses seriam um exemplo de um dos dois tipos de recalques que podem ser “destruídos”, segundo o texto freudiano “Análise terminável e análise interminável” (1937, p.242), admitindo-se a pulsão. Os do outro tipo “reconhecidos” (ibid.).

Agora, o recalcado, aquele bem recalcado mesmo, aquele que é insuportável para nós – o que Freud chamou de recalque originário e Lacan de menos um (extraído de sua elaboração da estrutura lógica: não há todos os significantes sem um a menos) - permanece incurável, indestrutível no inconsciente e se apresenta como o que, segundo Soler , Freud chama de “sintoma de horror” (ibid., p. 398).

aqui cabe outra nota...
O significante representa o sujeito para outro significante (outro sujeito). O significante como marcação no sujeito, como disse Dominique Fingermann.
fim da nota.

Portanto, o sintoma – freudianamente falando, é o resultado de uma formação de compromisso intrapsíquico, justamente para o recalcado permanecer onde se encontra, no inconsciente. E para que ele tem que permanecer no inconsciente?
Para o sujeito se defender, evitar um real de gozo pulsional assolador para o próprio e, além disso, caso viesse a tona, tornaria esse sujeito um “ser inassimilável a qualquer laço social” (Ibid., p. 393).
E tem mais... ele, o sintoma, tem a estrutura de uma metáfora e como tal quer dizer uma outra coisa, uma coisa diferente de sua apresentação, de seu cartão de visita. E como metáfora podemos interrogar, investigar e decifrá-lo. (ex: para o obeso... Você tem fome de que?).

Porém – e pode parecer paradoxal - reclamos dele, do nosso sintoma, mas não o largamos sem antes muito relutar por pior que ele seja. E por que e para que?
Porque o amamos, amamos nosso sintoma e para – além de nos fazer gozar - nos dar um sentido, um sentido de e para vida, afora ser um modo de dizer ao Outro. Seu conceito diz respeito necessariamente ao laço social. E o sintoma “fixa e determina o ser” (ibid., 398), como o significante mestre da identificação, que também nos fixa e determina. Isso eles tem em comum.
E é por isto que é difícil largarmos o sintoma que nos é tão caro, pois temos a impressão, porém falsa, que sem ele ficaremos a deriva ou inserido numa espécie de caos. Seria o medo do novo, do desconhecido, do que poderá surgir ? O medo de não saber lidar com a vida sem ele? Bem – pensa o bom neurótico - pelo menos sei transitar e conviver com meu velho sintoma. Já sem ele... E este é modo de identificação ao sintoma, que não serve para psicanálise, pois o sujeito estaria utilizando a via da resignação.
Enfim, o sintoma, em psicanálise, representa uma tentativa de cura para o sofrimento do sujeito em sua singularidade. E tem sua função, a “função sinto-mal”, conforme Quinet (1991, p. 15-18).

Bem, o quero dizer é que não somos bem aquilo que pensamos que somos. E aí está o problema, ou sua solução: onde você pensa você não é, pois você é onde não pensa. Estranho? Não, nem um pouco, até porque não sou só o biológico! Lacan, impondo uma torção no cogito cartesiano (penso, logo existo) nos esclarece, em seu artigo A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, dizendo: “penso onde não sou, logo sou onde não penso” (1957, p. 521).

abro aqui outro parênteses
Tudo isto me fez lembrar José Saramago e seu “Ensaio Sobre a Cegueira” quando disse: “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome. Essa coisa é o que somos.”
fecho parênteses

Bem, retornando...
Sabemos, pois já foi dito, que a psicanálise é uma experiência de decomposição da identidade (identificações subjetivas), um desinvestimento do si mesmo, do narcisismo e do sintoma.
É também um quebrar da identidade (que chamamos de desidentificação subjetiva) para dar um outro acesso a si mesmo.

- Mas, e o nosso nome? Ele não nos dá uma identidade? São algumas das questões que suscitam sobre o nome-próprio...

Bem, o nome próprio, além de nos inscrever na série de significantes da cadeia familiar, tem como um dos propósitos tamponar simbolicamente o nosso buraco, buraco da falta. Vejam, buraco não é um vazio no espaço, pois o buraco faz borda e podemos preenchê-lo, mesmo sabendo que não-todo, pois algo sempre faltará.
E, segundo Christian Dunker, o nome próprio é uma anomalia, pois este possui -sim- uma certa variação pela identidade. Uma função nominativa que está contido num conceito e este no universal. E todo conceito tem uma intenção e extensão. O eu/ego é o corpo e este tem atributo.
Vejam em Lacan (1964-1965, p. 105-107) esse exemplo: “Todos os homens são mortais”. Quando se coloca um nome próprio não é mais qualquer um e sim UM. “Sócrates é homem. Sócrates é mortal”. Também não se é qualquer um desde que se fale a um outro. Quem fala?
Então, o nome próprio é uma identidade sim, mas uma identidade do eu/ego, eu/corpo. É também o que faz a disjunção entre a identificação e a demanda.
Porém somos muito mais que isso, muito mais que o eu/ego/corpo, como nos lembra o querido Rubem Alves em livro de crônicas O Retorno e o Terno: “Mora em nós um outro que não se esquece da nossa verdade”.

Mais uma coisa sobre o nome próprio, é que este, mesmo tendo como referência o nome do pai, pode induzir, ao sujeito que o carrega, um novo sentido, um sentido diferente até do próprio pai. Filho de peixe, passarinho é! É difícil, mas não está na ordem do impossível.

Uma curiosidade aqui...
Sobre o nome próprio... no livro “Os Nomes do Pai em Jacques Lacan” de Erik Porge (1998), o nosso nome é dado pelo Outro (somos o desejo do Outro)...  na China a criança recebe o nome dos pais, mas ao crescer ela, se quiser, pode modificá-lo como bem entender. Ele (o sujeito) mesmo pode fazer suas densindentificações e, se quiser, trocar por novas identificações, aspirações, índices de seu desejo.

Voltando para o Ocidente...
Entretanto, sustentar nossa singularidade, nossa verdade, não é nada fácil, principalmente na nossa cultura, na sociedade contemporânea cujo o capital (o sistema) impera, manda e desmanda. Como assim? Porque não é do seu interesse, do capital e seu discurso, que o sujeito seja um “fora-da-massa” (ibid., p.287) dos comuns, dos consumidores. Que não aceita sua ideologia de produza, produza, produza... compre, compre, compre e“diz a cada um, um por um, ...corre, mexa-te, vai em busca do sucesso” (ibid., p.286). E o sujeito (a maioria) sucumbe de seu desejo para não estar out/fora, para não correr o risco de não pertencer ao ”coro dos contentes” (Torquato Neto), para não ser um “fora-do-laço” (ibid., p.287), dos laços sociais e sofrer discriminações, censuras por sua desobediência. E é por isso, para sustentar e manter sua singularidade, requer, por parte desse sujeito que se recusa em ser mais um entre outros, mais um marcado no bando de gado, um grande sacrifício.
Eh, ôô, vida de gado / Povo marcado, / ê Povo feliz - Zé Ramalho

Todavia, não é exclusividade do discurso capitalista a coletivização dos “Uns quaisquer” (ibid., p.290), pois atualmente assistimos crescer, de forma acentuada, o nacionalismo exacerbado, o fanatismo religioso, o racismo, a resistência à diversidade sexual, política partidária e por aí a fora.
De certa forma, isto acaba criando as chamadas identidades sociais e culturais... Bem, podemos falar disso depois.

Bem, para finalizar, caso queiram saber o que são e o que não são e modificarem-se no que puderem e quiserem, se re-iventarem, serem outro de si, um outro melhor para si mesmo, será através das desidentificações subjetivas, através da substituição das antigas por novas e “melhores” identificações ou mesmo através do “se fazer ser” ao invés de “se fazer ao ser” (ibid., p. 318), ao Outro que dele quer se servir.
O “se fazer ser” não é desidentificação, mas também não é pouca coisa, pois é um avanço terapêutico e de acordo com Colette Soler, o neurótico “chega a sair de seu 'eu não sou'para concretizar seu ser em alguma coisa” (idem). Mais ou menos assim: “Agora eu consigo me ocupar de 'minhas coisas'” (idem).

Bom, na experiência de análise, “o analisante adquire um saber que é duplo: saber do impossível [do incurável?], mas também saber da singularidade” (ibid.,p. 320). Segundo a autora, ele “adquire um vislumbre, toma uma espécie de panorâmica sobre o que o distingue, sobre sua maneira própria de aí fazer com sua falta e de compensá-la. É um saber separador, que tampona a culpa e a inibição e que descerra a impotência neurótica. Disso o sujeito é livre para servir-se e para sustentar-se no mundo e na árvore genealógica” (idem).

Em síntese, “o sujeito transformado pela análise se definirá por uma nova relação com a castração e com a pulsão” (ibid., p. 394). E é importante salientar – e nem negar - “que a palavra e a saída última cabem aqui ao sujeito ou antes à” (idem), segundo a autora, “insondável decisão do ser” (idem), citando Lacan. Quer dizer, a transformação é uma decisão do sujeito, assim como a responsabilidade.

Então, se quiserem continuar a ser seu sintoma, porém “um sintoma transformado, mais-além da travessia da fantasia” (ibid., p. 406) ...enfim, continuarem sendo vocês mesmos, só que outros, creio que, ao contrário do que diz a música do Cazuza, pagar a conta do analista para saber que eu sou é boa uma aposta.

Como bem disse uma colega psicanalista Yara Santos: “Tem que morrer para germinar / Plantar algum lugar / Ressuscitar no chão

Bem... É isso. Melhor dizendo, é o Isso !!!


Referências:
BAUMAN, Z. (2005) - Identidade – Rio de Janeiro – Ed. Jorge Zahar
CUNHA, E.L. Uma interrogação psicanalítica das identidades - Caderno CRH n.33 pp.209-228
FREUD, S. (1919) - O Estranho
LACAN, J. (1949) - “O Estadio do espelho como formador da função do eu” – in Escritos (1998, p.93-103) Rio de Janeiro – Ed. Jorge Zahar
LACAN, J. (1957) - "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud" – in Escritos (1998, p.493-533) Rio de Janeiro – Ed. Jorge Zahar
LACAN, J. (1964-1965) - O Seminário, livro 12: Problemas Cruciais da Psicanálise – não comercial
QUINET, A. (1991) - As 4 + 1 condições de análise - Rio de Janeiro – Ed. Jorge Zahar – 9.ed.- 2002


SOLER, C. (1998) - A psicanálise na civilização – Rio de Janeiro – Ed. Contra Capa